A população do Rio de Janeiro tem um dos piores sistemas de abastecimento de água e coleta de esgoto e, no entanto, paga uma das tarifas mais altas por esses serviços em todo o país. A Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) é campeã também do desperdício por falta de investimento nas adutoras de distribuição de água. Estima-se que do total de 42m³ por segundo de água destinada à população do Estado, cerca de 12m³ por segundo sejam desperdiçados. “Essa água jogada fora poderia abastecer São Gonçalo, Niterói e Itaboraí todos os dias”, afirma o deputado estadual Luiz Paulo (PSDB).
A Cedae é segunda maior companhia de saneamento do país e tem a maior tarifa média cobrada entre as companhias do setor nas capitais do Sudeste. Com orçamento para 2014 na casa dos R$ 5 Bilhões, sendo que desse total R$ 1 bilhão é gasto somente com a folha de pessoal, a empresa define de forma obscura suas tarifas. Os altos valores pagos pelos usuários têm uma explicação que vai muito além do aumento do consumo: a empresa ainda não tem regulação, contrariando a lei federal 11.445/2007, o que garante total liberdade à concessionária para aplicação de cobranças abusivas e que não justifica a deficiência do serviço.
Os investimentos da empresa estão muito aquém das necessidades para um atendimento mínimo razoável à população do Rio. O Sistema Guandú, lembra o deputado Luiz Paulo, foi inaugurado em 1965 e, portanto, já se passaram 50 anos que as adutoras estão em atividade e já deveria terem sido trocadas. “Além dos vazamentos constantes que geram o enorme desperdício, há também riscos para a população”, afirma o deputado.
Em julho deste ano, uma adutora da Cedae em Campo Grande se rompeu e jorrou água alagando e destruindo várias residências localizadas na Estrada do Mendanha, além de ter provocado a morte de uma menina de três anos que brincava na rua próxima a sua casa. “Esse sistema foi feito pelo ex-governador Carlos Lacerda e de lá pra cá nada foi feito a não ser alguns consertos de rompimentos na rede de distribuição. Esses vazamentos constante são a principal causa do desperdício”, afirma Luiz Paulo ressaltando que o governo Cabral não tem uma política de renovação dessa rede, mesmo com todos os mega eventos programados para o Rio.
Além de ser refém da empresa, a população do estado não tem como recorrer contra a ineficiência e as irregularidades na Cedae. Em 2009, o governador Sérgio Cabral, em ato do poder executivo, determinou que a companhia passasse a ser empresa não dependente de recursos públicos, o que lhe dava uma autonomia de empresa privada. Em 2012, estranhamente, Cabral decreta também que a Cedae só seria fiscalizada pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (AGENERSA) a partir de 2015, inclusive quanto ao valor das tarifas. Ou seja, entre 2012 e agosto de 2015 a Cedae vem fazendo o que quer e vai continuar nessa situação por mais um ano e meio.
Essa prática prejudicial à população do estado motivou Luiz Paulo a solicitar ao Ministério Público Estadual para que tome providências para enquadrar a empresa na legislação. Pela Lei 11.445, de 2007, todas as empresas de água e saneamento básico devem ser fiscalizadas por alguma agência reguladora, principalmente no que diz respeito às tarifas que no caso da Cedae ela própria determina sem esclarecer os critérios dessa cobrança.
Além do valor médio elevado, a cobrança inclui também a obrigatoriedade do pagamento da tarifa mínima, cobrada por consumo entre 0m³ e 15m³, no caso das residências, e 0m³ e 20m³, no caso de imóveis comerciais. Essa tarifa prejudica quem consome menos, pois não cobra pelo consumo efetivo. Mesmo que o hidrômetro aponte para a utilização de 5m³, o consumidor é obrigado a pagar o consumo mínimo mensal correspondente a 15 m³.
Pioneiro em ações contra a Cedae, em razão das irregularidades exercidas pela concessionária, o advogado Rômulo Cavalcante Mota afirma que a cobrança da chamada “tarifa mínima”, além de ser mais caro para o bolso do consumidor, incentiva o desperdício de água. “Sobre o imóvel residencial: se a Cedae fornecer 1m³ de água, ela cobra o mínimo de 15m³. O mínimo não ajuda ninguém a economizar, estimula o desperdício. A pessoa pensa: já que estou pagando um valor fixo, eu vou gastar”, explica o jurista.
Além da tarifa mínima, a maior crítica sobre o modelo de cobrança da fornecedora estadual de água é a existência da tarifa progressiva, aplicada de forma abusiva. Para se ter uma ideia do funcionamento das tarifas, uma família com quatros pessoas gasta, em média, 22m³ de água por mês. No caso das residências, a progressividade funciona da seguinte maneira: entre 0m³ e 15m³, a Cedae cobra um certa taxa. Ao ultrapassar essa faixa e atingir os 16m³, o consumidor é taxado em 120%. Entre 30m³ e 45m³, a porcentagem passa para 200%; de 46m³ a 60m³, a taxa atinge 500%; e quem consome mais de 60m³ paga 700% em cima da taxa inicial. Isso explica porque as contas de água e esgoto, durante o verão, atingem valores extraordinários. O mesmo método de progressividade é aplicado em edifícios comerciais. Síndicos e administradores de prédios e condomínios afirmam que a conta de água chega a triplicar de valor durante o verão.
“Em imóveis comerciais, a tarifa é ainda mais cara, o que muda é que tem progressividade a partir de 20m³. Voltando ao imóvel residencial: se o seu vizinho não tiver água e você fornecer para o seu vizinho e passar de 15m³, por exemplo – seja 20m³, 30m³ – você paga 120% mais caro, porque fez um favor. Por esse motivo, a conta vem muito mais cara que de costume”, condena Rômulo Cavalcante.
Nos edifícios, outra medida lucrativa que também é aplicada é a multiplicação do número de apartamentos ou lojas pelo consumo mínimo – 15m³ ou 20m³, dependendo do tipo de imóvel, seguindo a regra da “tarifa mínima”. Um prédio comercial com 20 lojas, que consome 30m³ ao todo por mês, pagará por 400m³ (20m³ por loja). Essa prática foi condenada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Sobre a legalidade das ações, Rômulo afirma que, pela falta de regulação, a Cedae não descumpre leis, e que a lei federal 11.445/2007 permite a cobrança da progressividade. No entanto, o advogado aponta que a porcentagem dessa progressividade, que pode chegar a 700%, deve ser revista por um órgão regulador e que a aprovação da progressividade não levou em conta os valores que seriam atribuídos a ela. O que se discute é a forma como a tarifa progressiva é praticada.
“Eu considero ilegal, não propriamente a progressividade, mas sim o tamanho, o valor dela. Esse valor é dos anos 1970. Hoje, não tem justificativa para essa aplicação absurda. Quando a lei de 2007 permitiu a progressividade, ela não disse de quanto era essa progressividade, o tamanho dela. Não há regulamentação”, reclama o advogado.
Rômulo ainda aponta que, em algum momento, essas atuações ilegais e abusivas terão de ser encaradas pelas autoridades jurídicas. Para ele, as medidas ferem os direitos do consumidor, uma vez que estipula taxas que não representam o consumo efetivo e considera a prática da progressividade exercida pela Cedae como uma “punição”.
“Os tribunais vão ter que enfrentar isso, porque fere o Código de Defesa do Consumidor. Mais cedo ou mais tarde vão ter que enfrentar essa ilegalidade, à luz do Código de Defesa do Consumidor. É uma cobrança em desacordo com o que a pessoa consome. A progressividade é uma punição”, define.
O advogado ainda exige um sistema de regulação urgente e sugere que o controle pode ser exercido de forma federal ou pelas próprias instâncias estaduais, como a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. “Eu acho que esta regulamentação pode ser federal ou da Assembleia Legislativa, ela pode fazer regulamentação dessa progressividade. É uma concessionária do estado, que obedece a leis estaduais, nada impede que a Assembleia vote uma lei dando parâmetros e acabando com o abuso que é essa tarifa progressiva”, finaliza.
Mesmo com as cobranças nas alturas e o lucro expressivo, a empresa segue enfrentando problemas estruturais, sem previsão de solução. O lançamento de esgoto na Praia de Botafogo e a sujeira na Baía de Guanabara mostram a precariedade e despreparo do serviço. As frequentes imagens de espumas nas águas de outras praias da cidade revelam a deficiência do tratamento de esgoto oferecido. Além disso, o serviço que não é para todos fica claro com as dificuldades de atuação nas comunidades carentes, que seguem expostos a um problema visto em países de extrema miséria.
Moradores de todo o Rio reclamam de falta de abastecimento
O abastecimento de água no Rio tem se tornado cada vez mais preocupante. Moradores de toda a cidade reclamam que a água não chega há meses, mas que as contas mensais chegam sem problemas, inclusive, com altos valores. Na Zona Norte, em bairros como Madureira e Vicente de Carvalho, moradores sofrem com os banhos de balde e as compras de garrafas de água mineral.
Na Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ), transitam em torno de 40 mil processos contra a concessionária, por conta de problemas no atendimento aos consumidores. Já na Defensoria Pública do Estado, são 17 processos desde 2011. Esse número inclui processos coletivos, sobre problemas de abastecimento em toda uma rua ou até mesmo em um bairro inteiro, representando a insatisfação de milhares de consumidores.
Fonte: Jornal do Brasil – 09/01/2014